domingo, 13 de abril de 2014

Na Tela: Noé

Lerman e Crowe: Salvando o que restou de um mundo corrompido. 

Quem conhece o trabalho de Darren Aronofsky jamais pensaria que ele faria um filme bíblico tal e qual o grande público espera. Por isso, é bom deixarmos a "surpresa" pelo resultado de Noé para os não iniciados à cinematografia do homem que já dirigiu Réquiem para Um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010). É verdade que Darren parece voltar aqui para as suas intenções no espinafrado (e bastante interessante) Fonte da Vida (2006), mas toda a embalagem e expectativa nos fazem acreditar que trata-se mais do que um filme bíblico, mas um verdadeiro blockbuster. Na verdade o filme tem a intenção de ser mais do que um filme religioso (talvez só o seu início que engana a maioria dos desavisados), trata-se de uma alegoria épica sobre problemas bastante contemporâneos, onde uma humanidade desgovernada não pensa muito na forma como explora as reservas naturais de onde vive, tão pouco as relações com os outros de sua espécie. Existe um forte jogo de poder entre os personagens, seja motivado por motivos mundanos ou de fanatismo religioso - é justamente nesse embate que o filme se sustenta em seus melhores momentos. Apesar das citações religiosas em seus filmes anteriores (seja o judaísmo na estreia em Pi/1998, crenças maias ou cristãs em Fonte da Vida/2006 ), descobri recentemente que Aronofsky é ateu, o que só ressalta a curiosidade e distanciamento na abordagem dessas temáticas. Noé trata do famoso trecho bíblico que conta a missão do personagem (vivido com gana por Russell Crowe) que recebe uma missão do Criador:  construir uma arca para abrigar casais de animais que precisam ser salvos diante de um grande dilúvio que irá destruir a humanidade corrompida. Vendo a terra sem vida, devastada pela ação predatória do homem é fácil perceber que faz tempo que a humanidade parou de zelar pela sua casa. As relações humanas ásperas propagadas pelos descendentes de Caim também justificariam a infelicidade do Criador perante a criatura que era para ser sua imagem e semelhança. A trama se aproxima e afasta da história que conhecemos por diversos momentos, investindo nos dilemas do protagonista perante a missão e investindo em algumas liberdades. Para aumentar a tensão na familia de Noé, o roteiro retira as noras de cena, deixando que o protagonista tenha a companhia da esposa Nameeh (uma inspirada Jennifer Connelly), dos filhos Shem (Douglas Booth), Cam (um eficiente Logan Lerman) e Jafé (Leo McHugh Carroll). As noras de Noé, foram substituídas por Illa (a cada vez melhor Emma Watson), filha adotiva histéril do patriarca. Quando o fim do mundo é anunciado, o maior medo de Naameh é que seus filhos não possam ter a chance ter esposas e filhos. Quanto à isso, Noé sente uma certa resignação que só aumenta o contexto para alguns dos momentos mais polêmicos do filme - já que o salvador dos animais não perceber que sua missão seja salvar a espécie que corrompeu a obra do criador (fato que pode levá-lo a tornar sua missão ainda mais dolorosa e afastá-lo para sempre de sua família). Aronofsky lida bem com os traços mais sombrios do roteiro escrito por ele e Ari Handel (baseado na Bíblia e textos antigos como os Pergaminhos do Mar Morto, O Livro de Enoque e o Livro dos Jubileus), mas destoa quando escancara o tom de fantasia usando o ancestral de Noé, Matusalém (um preguiçoso Anthony Hopkins) e a ajuda dos anjos caídos (castigados por Deus e transformados em gigantes de pedra). No entanto, Darren consegue criar um universo bastante harmônico ancorado num período de milagres e intervenções divinas bem demarcadas. Outro aspecto que desperta polêmica é a presença do vilão Tubal-Cain (Ray Winstone), que é mostrado sem muitas nuances, mas que cita pensamentos bastante atuais sobre a forma como o homem lida com o mundo em sociedade. Apesar de todas as críticas, o filme consegue se equilibrar entre a provocação e o respeito aos textos religiosos, prova disso são as belíssimas cenas da construção do mundo em sete dias (destaque para a colagem multifacetadas de Cains matando Abéis, ontem e hoje...), a vinda dos animais para a Arca e o próprio dilúvio, mostrado com todo o horror do povo que desejava ser salvo da inundação. O filme deve se tornar um sucesso mundial  e consolidar Darren como um dos diretores mais talentosos do cinema atual (ainda que eu considere que são nos momentos mais pesadelescos que sua mão se torne mais plena de bilhantismo). Noé mostra-se o passo seguinte (muito melhor do que seria ter quebrado o galho para o amigo Hugh Jackman dirigindo o pífio Wolverine 2 no ano passado), vale lembrar que antes o diretor fizera um indie de 13 milhões (Cisne Negro) que  arrecadou mais de 250 milhões pelo mundo, foi multi-indicado ao Oscar e levou um para casa. Nos 138 minutos da saga claustrofóbica da Arca, posso perceber o quanto custou para o diretor embarcar em sua primeira super-produção, cada tropeço da narrativa, cada ousadia, cada nó ou personagem com (ou sem) tridimensionalidade, transborda as angústias de Darren para completar sua missão de diretor autoral dentro da caixinha de um grande estúdio. O fato é que Noé funciona dentro das intenções do diretor (trabalhar personagens numa situação limite - uma obsessão em sua cinematografia) e merece ser visto como uma releitura de uma História antiga, capaz de refletir muito do mundo atual. 

Meo, Connely, Booth e Emma: a subjetiva leitura dos milagres do criador.

Noé (Noah/EUA-2014) de Darren Aronofsky com Russell Crowe, Jennifer Connelly, Emma Watson, Logan Lerman, Ray Winstone, Anthony Hopkins e Douglas Booth. ☻☻☻☻

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