terça-feira, 26 de março de 2024

PL►Y: Dogman

Calleb: talento que merece reconhecimento.
Não sei onde eu estava com a cabeça que imaginei que este filme era uma versão do filme italiano Dogman/2018 dirigido por Matteo Garrone, embora os dois possuam semelhanças, são produções completamente diferentes. Talvez os dois tenham como inspiração a mesma história real. Luc Besson disse que se baseou na história de um menino que foi trancado dentro de uma jaula com cachorros pelo próprio pai, assim surgiu a ideia de criar a história de Douglas Munrow (Calleb Landry Jones) que precisou sobreviver aos efeitos dos abusos físicos de seu pai, que o trancou em um canil junto com os cães que treinava para participar de rinhas ilegais. Diante de um lar marcado pela violência e a falta de afeto, seus melhores amigos se tornam os caninos, a quem passa a considerar seus melhores amigos. No entanto, o filme de Besson insere vários outros elementos nesta história que contribui para que a produção se torne uma espécie de fantasia sobre um personagem inacreditável, resta ao espectador comprar a ideia ou não. Eu comprei. Especialmente pela atuação vigorosa de Calleb no papel principal. Ele torna o personagem bastante convincente na forma conturbada com que encara o mundo - e não falta elementos que demonstrem a visão estranha de mundo que ele possui. Além do pai violento, o menino precisa de uma cadeira de rodas para se locomover por conta de um estilhaço alojado em sua coluna, ele ainda cresce em um reformatório em que encontra na arte alguma alegria. Fã de literatura e do teatro, quando crescido ele acaba vivendo com seus cães e realizando performances como drag queen para se sustentar. Fosse isso, a vida do moço teria se tornado tranquila, mas acaba enveredando pelo mundo do crime. Eu sei, são muitos elementos que por vezes só aumentam a desconfiança em torno do filme que participou da competição do Festival de Veneza do ano passado, mas afinal de contas estamos diante de um filme de Luc Besson que nunca foi um diretor sutil ou discreto, no entanto, de vez em quando ele acerta na mistura. Embora o resultado seja um bocado fantasioso, Dogman é um filme que funciona pela construção de um personagem interessante. Não seria exagero dizer que o filme funciona principalmente por conta de seu ator principal que faz tempo merece maior reconhecimento. Embora tenha como seu trabalho mais famoso o mutante Banshee de X-Men Primeira Classe (2011), Calleb Landry Jones já coleciona filmes com diretores renomados e possui o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes por seu trabalho avassalador em Nitram (2021). Infelizmente Calleb ainda não caiu no radar do grande público, mas é dono de um talento inquestionável (que notei desde que o vi em O Último Exorcismo/2010). É o tipo de ator que sempre vale a pena ficar de olho. O filme acabou de entrar no catálogo do Prime Video.

Dogman (França/2023) de Luc Besson com Calleb Landry Jones, Jojo T. Gibbs, Christopher Denham, Clemens Schick, Grace Palma, Lincoln Powell e John Charles Aguilar.

PL►Y: Nosso Amor

Liam e Lesley:

Sabe aquele filme que quando lançam você fica interessado em assistir, mas com o tempo ele fica difícil de achar e você acaba esquecendo que ele existe? Isso aconteceu com Nosso Amor, filme estrelado por Liam Neeson (dando uma pausa nos filmes de ação que acumulam em sua carreira atualmente) e uma atriz que gosto muito, embora seus trabalhos sejam raros no cinema, a Lesley Manville (de Um Ano a Mais/2010 e Trama Fantasma/2017 . No último sábado chuvoso, eu procurava algo para ver naquele preguiça de depois do almoço e o encontrei quase de presente na televisão. O filme é dirigido pela dupla Lisa Barros D'Sa e Glenn Leyburn de forma bastante sensível ao acompanhar um casal com décadas de relacionamento e agora às voltas com um tratamento contra um câncer. Joan (Lesley) e Tom (Liam) já passaram por muitas coisas juntos e quando ela descobre um caroço no seio, a rotina de exames, tratamentos e cirurgias se tornam constante na rotina do casal que tenta levar os dias mantendo o companheirismo e bom humor. O filme opta por uma abordagem sincera daquela situação, abordando medos, inseguranças, dores e enjoos. Existe a inevitável cena da queda de cabelo, algumas discussões e pessoas que encontram pelo caminho que precisam lidar com o temor a respeito do que virá pela frente, algo que aflige também os dois. O casal de veteranos está excelente em cena, Liam encarna o esposo que disfarça suas inseguranças com piadas a todo instante, enquanto Lesley é a mulher serena com pé no chão que precisa lidar com o desconhecido. O filme segue sem firulas narrativas e sabe manter todo o sofrimento da situação na rédea curta, evitando exageros. Sabe dosar as cenas que deixam claro que existe um amor forte construído ao longo do tempo entre aqueles dois personagens (de forma que a ideia de um perder o outro se torna um temor para o próprio espectador). É um tipo de filme que se torna diferente justamente pela abordagem que se propõe sobre a vida de um casal que viveu muitos tempo junto e que pretende passar ainda mais tempo um do lado do outro. Um filme discreto, bonito e sincero que é uma raridade nos tempos atuais e que revela como seus atores são ótimos quando tem um bom material nas mãos. 

Nosso Amor (Ordinary Love / Reino Unido - 2019) de Lisa Barros D'Sa e Glenn Leyburn com Lesley Manville, Liam Neeson, Esh Alladi, Maleanie Clark Pullen, David Wilmot e Amit Sha. 

segunda-feira, 25 de março de 2024

KLÁSSIQO: Mephisto

Klaus: A arte de ser repulsivo.
Mephisto é o sexto livro e obra mais conhecida de Klaus Mann, que o publicou em 1936 quando estava exilado em Amsterdam. A trama traz muitos elementos que relacionam diretamente o protagonista com o ator Gustaf Gründgens, ex-marido de Erika Mann, irmã de Klaus. Ambos são filhos do renomado Thomas Mann e vale a pena procurar mais informações sobre a história da família que já é interessante por si só. Durante a ascensão de Hitler na Alemanha, Gustaf teria se aproximado do partido sob o pretexto de continuar trabalhando, mas a que preço? Klaus constrói no livro uma analogia a Fausto de Goethe com as atitudes do ex-cunhado que vende à alma para um regime em troca de fama e sucesso, assim como Fausto o fez ao demônio que dá nome ao filme. O livro gerou muitas polêmicas após sua publicação na Alemanha na década de 1950, rendendo processos e tudo mais, no entanto, ela permanece relevante sobre o período que retrata, especialmente ao demonstrar que a participação de pessoas aparentemente comuns foram cruciais para ascensão do partido na Alemanha. Em 1981 o cineasta húngaro István Szabó resolveu realizar uma adaptação do livro e se consagrou com o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes e  Oscar de Filme Estrangeiro pela forma exuberante como retrata a sombria história de Hendrik Hoefgen (Klaus Maria Brandauer), um ator do teatro alemão que se aproxima cada vez mais da ascensão extremista alemã. Hendrik é apresentado como um sujeito talentoso e bastante envolvente em suas relações amorosas, mas também vaidoso ao ponto de se envolver com pessoas poderosas para conseguir alcançar um status que até então não havia sido reservado à sua carreira. Embora utilize o trabalho como escudo, suas atitudes se tornam cada vez mais reprováveis com relação às pessoas que o cerca. Em determinados momentos não sabemos quando ele está atuando e quando está falando a verdade, até que ele se revele de vez ao espectador. O trabalho de Klaus Maria Brandauer é o grande destaque do filme, ao construir um personagem escorregadio, capaz de sórdidas traições em nome de sua vaidade. É interessante perceber que o filme parece um capítulo seguinte ao que vemos em Cabaré (1972) de Bob Fosse (um filme oscarizado que merecia ser mais lembrado do que é), sobre o referido período na Alemanha. No entanto, os dois filmes não poderiam ser mais diferentes, enquanto o filme de Fosse é um musical temperado com um país em sombria transformação, Mephisto é um drama pesado sobre um homem que vende sua alma para conseguir cada vez mais poder em sua esfera. Visto hoje, há quem considere o filme um tanto exagerado e afetado, no entanto, nada faz com que perca a força da história que tem para contar. A enigmática cena final ainda soa tão provocadora quanto antes quando personagem indaga que ao espectador "o que mais poderia fazer?", existe a sugestão de que tudo seria em nome da sobrevivência, mas também a ideia de que poderia ter seguido por caminhos diferentes em nome de princípios que talvez ele nunca suspeitasse que existissem. Mephisto é um clássico que permanece impactante até hoje. 

Mephisto (Hungria/1981) de István Szabó com Klaus Maria Brandauer, Ildikó Bánsági, Krystyna Janda, Rolf Hoppe, Péter Andorai e György Cserhalmi

domingo, 24 de março de 2024

PL►Y: Segredos de um Escândalo

Natalie e Julianne: brilhantes em estranha dinâmica.
 
Desde que foi exibido pela primeira vez no Festival de Cannes do ano passado, May December se tornou um dos filmes mais comentados de 2023. Pena que conforme eram anunciados os indicados nas premiações de fim de ano o filme perdia fôlego quando as pessoas se davam conta da estranha história real em que se inspirava. O fato de filme ter chegado ao Oscar com apenas uma indicação ao prêmio de Roteiro Original é compreensível, mas imperdoável, já que o longa se tornou um dos filmes mais inquietantes dos últimos tempos, além de contar com três atuações memoráveis em seu elenco. Escrito pela estreante Samy Burch ao lado de Alex Mechanik, a trama é inspirada na história que assombrou o imaginário de muita gente ao final dos anos 1990: uma professora de 36 anos que manteve relações sexuais com um aluno de 13. O crime fez a glória dos tabloides que receberam capítulos surpresa quando ela estava grávida na prisão e, tempos depois, os dois acabaram se casando. O filme dirigido por Todd Haynes não se concentra nos fatos escandalosos dessa história, mas prefere focar no impacto desses acontecimentos a longo prazo na vida dos envolvidos. Aqui trata-se de uma mulher que trabalhava em uma pet shop que se envolve com um menino contratado para auxiliar nos trabalhos. A diferença de idade é a mesma e a repercussão da história se repete. O tempo passa e tudo parece mais calmo, com os filhos crescidos e uma vida pacata em uma ilha, Gracie (Julianne Moore) e Joe (Charles Melton) terão que lidar com a presença de uma atriz, Elizabeth (Natalie Portman), que pretende estudar a história de ambos para atuar em um filme sobre a história dos dois. É visível o desconforto do casal com a presença da atriz, mas ele se torna ainda maior quando os dois precisam olhar para o passado. Enquanto Gracie deixa claro que não se arrepende e não gosta de pensar no passado, Joe tenta seguir pelo mesmo caminho enquanto surge como uma espécie de irmão mais velho dos três filhos enquanto recebe ordens da esposa para cumprir seus afazeres. Existe uma dinâmica estranha entre os personagens, que ganha contornos ainda mais desconfortáveis com a trilha sonora exagerada e o temperamento over de Gracie para expressar uma eterna fragilidade. Julianne Moore está perfeita como uma mulher que aparenta não ser capaz de ter feito o que fez, mas que também não parece ser o que pensam que ela é. Ela expressa bem o que o filme tem de melhor: as entrelinhas. A maior parte da trama ocorre por baixo do jogo de aparências que é apresentado, até mesmo com relação ao interesse de Elizabeth pelo casal. Falando nisso, a personagem de Portman tem alguns momentos que embaçam seus princípios e se torna tão complexa quanto a personagem que pretende interpretar. Natalie e Julianne estabelecem uma dinâmica interessantíssima, em que uma captura os trejeitos da outra na tentativa de absorver sua identidade.  O resultado gera cenas arrepiantes, tão arrepiantes como quando percebemos que somente agora Joe se dá conta que uma parte de sua vida foi devorada pelo seu envolvimento com Gracie. Todd Haynes prima mais uma vez pela elegância para apresentar uma história  em que tudo está no lugar para soar como uma grande simulação de sentimentos e sensações. Batizado por aqui de Segredos de um Escândalo, o filme merecia ver seu trio de artistas entre os indicados ao Oscar,  mas ao final da narrativa, o desconforto deve ter  sido forte demais para os votantes. Aparentemente simples, May December (um trocadilho utilizado para falar de relações entre pessoas de faixas etárias muito diferentes) é um filme que merece ser visto várias vezes para perceber todas as nuances perigosas que apresenta. Comprado pela Netflix (embora não tenha entrado no catalogo do streaming até hoje), o filme merecia uma campanha mais potente para as indicações, mas acabou perdendo espaço para o xaroposo Maestro de Bradley Cooper. 

Segredos de um Escândalo (May December / EUA - 2023) de Todd Haynes com Natalie Portman, Julianne Moore, Charles Melton, Cory Michael Smith, Gabriel Chung e Andrea Frankle.

#FDS Diretoras: Pedágio

Kauan e Maeve: pecados pelo caminho.
 
Infelizmente não consegui fazer um Ciclo Diretoras no mês de março, mas tentei compensar dedicando esse #FimDeSemana a três cineastas que mereceram atenção na safra recente. Para fechar o fim de semana, assisti ao novo filme de Krolina Markovicz. Vale dizer que a cineasta brasileira está disposta a se tornar um dos maiores nomes do cinema nacional. Após a estreia avassaladora com Carvão (2022) a diretora retornou chamando atenção com Pedágio, seu segundo longa-metragem e que não apenas foi selecionado para o influente Festival de Toronto como também garantiu à diretora uma homenagem através do Tribute Awards que também destacou as contribuições de Pedro Almodóvar, Spike Lee e o fotógrafo polonês Lukasz Zal à sétima arte. Faltou só que o Brasil escolhesse Pedágio para disputar uma vaga na categoria de filme internacional do Oscar2024 (algo que Carvão também deveria ter conquistado). Pedágio conta a história de uma mãe que está cada vez mais incomodada com a homossexualidade do filho adolescente. Tudo que o rapaz faz a incomoda, dos vídeos que posta na internet fazendo propaganda de alguns produtos para ganhar um dinheirinho. As músicas que o menino escuta também a tiram do sério e até quando ele se fantasia para animar uma festa ela detesta. Eis que surge um curso de "cura gay" numa igreja da região e aquela passa a ser a grande chance de que o menino saia do "mau caminho". O problema é que com a mãe trabalhando no pedágio da cidade, a grana é sempre curta e o preço do tal curso é quase o valor de um salário mínimo, mas, certa de que não pode perder tão oportunidade, a "mãe zelosa" se arrisca a ser cúmplice de criminosos para alcançar seu objetivo. Pedágio demonstra mais uma vez como Karolina é dona de uma escrita esperta e de uma direção envolvente que evolui à narrativa gradativamente na ironias que o destino é capaz de arquitetar. Ainda que o visual seja um tanto sujo, as paisagens nebulosas de Cubatão nunca foram suspeitas de se tornarem tão cinematográficas. Na pele da mãe, a Suellen, a atriz Maeve Jenkins tem mais uma interpretação que a credencia como uma das atrizes mais interessantes de nosso país, afinal, ela incorpora com perfeição a ideia de que para fazer seu filho deixar de ser gay vale a pena qualquer sacrifício. Não por acaso, Tiquinho (Kauan Alvarenga) é o personagem mais sereno do filme, destoando dos outros personagens que o julgam e não veem problema em realizar outras ações que também são vistas como "pecados aos olhos de Deus". Existe uma camada religiosa no filme, mas ela só torna ainda mais estranha a motivação para que algumas pessoas ainda se incomodem com o fato de outro gostar de pessoas do mesmo sexo. Para além de todo o viés de discutir o tema do preconceito, Markovicz toca em temas bastante sensíveis relacionados ao tema, desde a relação entre mãe e filho como de Tiquinho às voltas com um mundo que o rejeita. Pedágio pode não ter o brilhantismo de Carvão, mas comprova que Markovicz merece sempre atenção.

 Pedágio (Brasil/2023) de Karolina Markovicz com Maeve Jinkins, Kauan Alvarenga, Thomas Aquino, Isac Graça, Aline Marta Maia e Erom Cordeiro.

sábado, 23 de março de 2024

#FDS Diretoras: Anatomia de Uma Queda

Sandra Hüller e Swan Arlaud: entre a verdade e o sensacionalismo.

Enquanto nutria minha vontade gigante de assistir Anatomia de Uma Queda, realizei uma retrospectiva dos filmes anteriores de Justine Triet. Antes de ser premiada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, a cineasta francesa havia realizado outros três longa metragens, todos também escritos por ela e seu esposo, Arthur Harari (ambos premiados com pelo último Oscar de roteiro original de Anatomia de uma Queda). O mais interessante é perceber que vistos em ordem cronológica, seus filmes revelam pontos em que uma produção revela  um ponto de inspiração para seu sucessor, no entanto, nada realizado anteriormente pela diretora se compara ao brilhantismo que ela exibe aqui, seja na escrita ou no controle da narrativa. O mais interessante é que o filme nasce de uma ideia fixa na filmografia de Trier: casais em crise. Se em Na Cama com Vitória (2016) a relação do casal acaba parando nos tribunais, aqui, o que está em julgamento parece ser o próprio casamento dos personagens. O filme conta a história de uma escritora, Sandra (a excelente atriz alemã Sandra Hüller, indicada ao Oscar pelo papel) que vive afastada com esposo (Samuel Theis), filho (Milo Machado-Graner) e cachorro (Messi, um achado) nos alpes franceses da cidade em que o seu esposo nasceu. Quando o filme começa, ela tenta ser entrevistada enquanto marido coloca uma música altíssima para embalar a reforma do sótão. A entrevista é interrompida. O filho vai passear com o cachorro e ao voltar, ele se depara com pai morto sob a neve. Sandra escuta os gritos do filho e o que aparentemente era um acidente chega aos tribunais com a suspeita de que Sandra pode ser responsável pela morte do esposo. A partir daí, momentos bastante pessoais daquela casal começam a ser destrinchados e impostos para justificar um assassinato ou a tentativa de um suicídio. Aspectos pessoais da vida de Sandra (sua sexualidade, nacionalidade, profissão e obra) começam a impulsionar narrativas que questionam cada vez mais a sua inocência, num labirinto de versões e inferências sobre fatos que por vezes nem mesmo o espectador sabe mais o que pensar. Anatomia de uma Queda se torna assim um verdadeiro estudo sobre a construção da verdade, da difícil tarefa de chegar ao que de fato aconteceu quanto uma série de informações são apresentadas e manipuladas para chegar a um objetivo: a inocência ou a condenação de Sandra. Justine Triet conduz o filme com maestria ancorada por um roteiro excepcional e uma montagem esperta (também indicada ao Oscar), que sempre revela o necessário para manter a interrogação na mente do espectador. O filme é uma verdadeira aula de como manter o interesse do espectador com base nos diálogos encadeados e, por vezes, confrontados ao longo de duas horas e meia de narrativa. Anatomia de Uma Queda se constrói como quebra-cabeça, mas no fim não saberemos se todas as peças estão no lugar certo, especialmente depois do testemunho final deixado na interpretação do prodígio Milo Machado-Graner. É um daqueles filmes que faz você pensar por muito tempo e pode até se tornar uma referência para os surrados filmes de tribunal. O filme, que concorreu a cinco Oscars, incluindo o de Melhor Filme já está disponível no Prime Video. 

Anatomia de Uma Queda (França / 2023) de Justine Triet com Sandra Hüller, Milo Machado-Graner, Swann Arlaud, Samuel Theis, Antoine Reinartz e Anne Rotger.

sexta-feira, 22 de março de 2024

#FDS Diretoras: Priscilla

Priscilla e Elvis: conto de fadas do avesso.

Enquanto Baz Luhrman ainda desfrutava de todo sucesso de seu filme Elvis (2022), Sofia Coppola divulgou que contaria a história de Priscilla Presley, a esposa do Rei do Rock. Houve quem torcesse o nariz para a ideia, mas houve um grupo que considerou que seria interessante ver o outro lado da história que foi contada pelo exuberante diretor pelas mãos de uma cineasta de estilo completamente diferente como Sofia. Se a própria Priscilla havia elogiado o filme de Baz, ela agora se tornava produtora do filme de Coppola com seu roteiro adaptado de sua famosa autobiografia chamada "Elvis e Eu" lançada em 1985. A obra já havia sido adaptada para um telefilme em 1988 (que por aqui foi exibida no SBT), mas isso não era obstáculo nenhum para o trabalho de Sofia. Dona de um estilo único, vale lembrar que ela se tornou a primeira cineasta nascida nos Estados Unidos indicada ao Oscar de direção por Encontros e Desencontros (2003) e, desde então, seguiu uma carreira que não se curva perante os parâmetros da indústria de Hollywood. Priscilla é mais um exemplo disso, ela consegue ser o total oposto do brilho colorido glamouroso do longa de Baz Lurhman e se torna um filme bastante introspectivo ao criar um retrato bastante íntimo da personagem que se apaixona pelo maior astro da música mundial - quando era uma adolescente de dezesseis anos. Este deve ser o ponto mais incômodo do filme e a escolha de Cailee Spaeny ressalta ainda mais a diferença de idade entre Priscilla e seu futuro esposo, já que ela consegue ser muito convincente como alguém muito jovem, assim como a mulher madura que se torna. A protagonista morava em uma base militar na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, no mesmo período em que Elvis foi para a guerra. Obviamente que a garota ficaria fascinada com a chance de conhecer o ídolo de todas as garotas de sua idade e Elvis também ficou visivelmente atraído por ela. Não demora muito para que ambos fiquem debaixo do mesmo teto, ou melhor, para que ela se mude para casa dele enquanto ele cumpre seus compromissos de astro do rock. Durante a maior parte do tempo, Priscilla passa seus dias sozinha, indo para a escola, convivendo com as rápidas visitas de seu amado e as famosas oscilações de humor de seu futuro esposo. Muita gente reclama que o filme se arrasta nessa rotina da personagem, mas são justamente estes momentos que fazem do filme uma obra bastante incômoda sobre a realidade desta personagem real. Fico imaginando uma menina de dezesseis anos que é escolhida para ser a esposa de um homem mais velho e é tratada como uma espécie de propriedade preciosa, mas que precisa lidar com todos os percalços da personalidade complicada de seu parceiro. Cailee está ótima em cena e foi considerada a melhor atriz no Festival de Veneza do ano passado com justiça. Em sua interpretação podemos ver a montanha russa de emoções que se tornou a vida daquela adolescente, que precisou se tornar mulher à sombra das vontades de um dos homens mais famosos do mundo. Por outro lado, temos Jacob Elordi que não se parece com Elvis, mas consegue emanar um magnetismo irresistível, além de saber dosar os destemperos do cantor longe das câmeras na privacidade do lar. Existe algo de realmente angustiante nesta trama de conto de fadas virado do avesso, algo que o faz ser um filme complementar ao filme de Baz Luhrman.  Pode não ser um filme perfeito, mas é um exercício narrativo instigante proposto pela diretora. O filme está em cartaz na MUBI. 

Priscilla (EUA - Itália / 2023) de Sofia Coppola com Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Ari Cohen, Dagmara Dominczyk, Tim Post, Lyne Griffin e R. Austin Ball.