sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Na Tela: Elle

Huppert: mais uma aula de interpretação. 

Isabelle Huppert é mais do que uma atriz, trata-se de um verdadeiro ícone do cinema - sobretudo o europeu. Aos 62 anos apresenta-se cada vez mais destemida ao encarnar seus papéis mais perigosos. Cada gesto, sorriso ou flexão de voz sugere uma avalanche de significados, na mesma proporção que, ao estar em silêncio, evoca todo um universo que a transforam numa espécie de esfinge da sétima arte - e quando a atriz tem um texto denso nas mãos isso fica ainda mais evidente. Atuando no cinema desde o início da década de 1970, Huppert coleciona 15 indicações ao César (conhecido como o Oscar francês, sendo premiada somente por Mulheres Diabólicas/1995 de Claude Chabrol) e um prêmio de melhor atriz em Cannes - por despedaçar a alma diante da câmera em A Professora de Piano (2001) de Mikael Haneke. Há quem diga que chegou a hora da atriz ter seu trabalho finalmente reconhecido com uma indicação ao Oscar. Será? Se não acontecer, ela pelo menos serviu para ter a interpretação feminina mais marcante de 2016 em Elle, novo filme de Paul Verhoeven, que desde que foi exibido em Cannes dá o que falar. Huppert interpreta Michelle Leblanc, executiva de uma companhia de jogos eletrônicos que começa o filme sendo estuprada, mas tenta manter o controle da situação. Vai ao médico, evita ir à polícia e conta aos amigos o que aconteceu como se estivesse falando sobre um livro que terminou de ler. À primeira vista a personagem é de uma frieza ímpar, mas aos poucos percebe-se que dentro dela a violência lhe gerou desdobramentos inimagináveis. A tarefa de Huppert é tornar o interior de Michelle algo evidente - o que para a atriz parece um verdadeiro deleite.  Ainda que a mente da personagem sempre relembre do fato (com desdobramentos diferentes) são ações do cotidiano que a tornam uma personagem tão fora do comum. Sobrevivente de um trauma de infância envolvendo o pai (que assassinou diversas pessoas e que não se sabe se ela foi testemunha ou cúmplice), ela tem uma relação crítica com a mãe e costuma ser bastante incisiva com o filho (Jonas Bloquet), que mostra-se bem menos forte do que ela queria. Além disso, em seu círculo de amigos, Michelle pode aguentar ser qualquer coisa, menos vítima das situações - e por isso mesmo, as consequências do estupro irá subverter tudo o que esperamos que aconteça. É verdade que quem conhece o trabalho de Verhoeven ficará menos surpreso que o resto dos mortais, afinal, o hoje senhor de 78 anos continua explorando os limites do cinema, foi assim com a violência crua de Robocop (1987), com a ousadia erótica do primeiro Instinto Selvagem (1992) e a vulgaridade exagerada de Showgirls (1995), Verhoeven já embarcou na polêmica do estupro em seu primeiro filme americano, Conquista Sangrenta/1985, onde Jennifer Jason Leigh tinha uma relação de amor e ódio com seu algoz vivido por Hutger Hauer, mas aqui ele pega o tema delicado e o aborda de forma inédita, com estranhas doses de humor negro -  que faz a plateia rir nervosa até a última cena, onde é o estuprador que pergunta o motivo de tudo o que aconteceu até ali. Esse sentido oculto que torna Elle (a mulher e o filme) tão instigante com suas dezenas de camadas na estranha harmonia que só os filmes que continuam na sua cabeça por anos são capazes de ter. Verhoeven até ficou tentado em filmar nos Estados Unidos tendo Sharon Stone ou Nicole Kidman (e as duas se matariam pelo papel), mas resolveu filmar na Europa com uma senhora atriz que não tem medo de abraçar tudo que a protagonista deixa no ar, transformando o filme num espetáculo provocativo. Não por acaso, a França escolheu o filme para ser seu representante entre os candidatos ao Oscar de filme estrangeiro.

Elle (França/Alemanha/Bélgica - 2016) de Paul Verhoeven com Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Judith Magre, Christian Berkel, Jonas Bloquet e Virginie Efira. ☻☻☻☻

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