sábado, 4 de maio de 2024

PL►Y: Transmissões Sinistras

Shum: impressões traiçoeiras.
 
Um amigo ficou tão instigado com Transmissões Sinistras que recomendou que eu assistisse. O título não ajuda a despertar interesse e o longa está escondido no acervo do Prime Video sem muito destaque. De fato o ponto de partida do longa é muito interessante, já que é baseado em uma história real sobre transmissões piratas que invadiram o sinal de emissoras nos Estados Unidos nos anos de 1963 e 1987 com imagens estranhas e sons bizarros. Nunca foram identificados os responsáveis ou as intenções daquelas imagens, mas algumas pessoas tiveram arrepios com o que viram na tela. Divagando sobre o que aconteceu e inúmeras teorias envolvendo o ocorrido, os roteiristas Phil Drinkwater e Tim Woodall construíram a história de James (Harry Shum Jr), um rapaz que ao final dos anos 1990 trabalha como arquivista de vídeo em uma emissora e se depara com uma das transmissões. Ele não conhece aquela história e começa a desenvolver uma verdadeira obsessão sobre o que aquelas imagens queriam dizer. No entanto, enquanto busca desvendar os mistérios da transmissão, James tem sua objetividade comprometida com acontecimentos mal resolvidos de sua própria vida - o que faz com que associe aqueles vídeos a alguns crimes sem resolução. O diretor Jacob Gentry consegue fazer um bom trabalho durante a primeira metade da sessão, em que consegue explorar o tom de paranoia junto às imagens esquisitas que apresenta e as teorias que começam a surgir no caminho do protagonista. Ainda que seja notório o orçamento curto do filme, ele consegue construir uma tensão envolvente na busca pela verdade sobre aquele sinal pirata que foi até investigado pelo FBI. O problema é que conforme o filme insere outros personagens no caminho de James o filme se embola nas intenções, se torna repetitivo e pouco convincente com os rumos escolhidos. A intenção é até interessante, já que aponta para uma  determinada cegueira do protagonista, que está tão obstinado a encontrar as respostas que deseja que é incapaz de questionar qualquer indicação de que esteja errado. Lembra um pouco o caminho feito por figuras notórias que produzem suas próprias verdades inquestionáveis e ainda atraem seguidores. O desfecho bizarro aumenta ainda mais o tom pessimista do desfecho e reforça a atmosfera de terror que aparecia nas entrelinhas da história. Ao terminar o filme, tive a impressão que este ponto de partida ainda pode ser retomado em uma produção mais ambiciosa e interessante no futuro. 
 
Transmissões Sinistras (Broadcast Signal Intrusion - EUA / 2021) de Jacob Gentry com  Harry Shum Jr, Kelley Mack, Chris Sullivan, Michael B. Woods, Justin Welborn e Jennifer Jelsema.

 

PL►Y: Todos Nós Desconhecidos

Andrew e Paul: de amor e fantasmas.
 
Adam (Andrew Scott) é um escritor que foi morar em um prédio recém inaugurado. Um dia, quando soa o alarme de incêndio, ele vai até a calçada sem muita empolgação. Olhando para o prédio, ele descobre que não é o único morador daquele lugar. Mais tarde ele irá conhecer o vizinho, Harry (Paul Mescal), que bate à sua porta e demonstra um interesse genuíno pelo vizinho, mas Adam não se empolga muito. Pelo menos no primeiro encontro. Desde a primeira cena em que estão juntos, percebemos que os dois são almas solitárias e que podem ser a companhia mais agradável de um para o outro. Poderia ser mais um romance gay urbano idealizado pelo diretor Andrew Haigh, da série Looking (2014-2025) e  Weekend/2011, mas um dia em suas andanças pela cidade, Adam é guiado para casa em que viveu com seus pais até os onze anos. O pai (Jamie Bell) e a mãe (Claire Foy) não aparecem envelhecidos, mas com a mesma aparência de quando o filho ainda era um menino, antes do acidente iria leva-los embora para sempre, ou pelo menos, até aquele encontro inusitado. No celebrado 45 Anos (2015), Haigh já demonstrava saber lidar com histórias de fantasmas na mente de seus personagens, mas aqui ele eleva esta habilidade a outro patamar. O diretor não gasta tempo explicando o que está acontecendo, faz com o que o espectador escolha a melhor leitura para o que observa na tela. Estaria  Adam delirando? Estaria vendo realmente os fantasmas de seus pais? Estaria criando um novo roteiro? As questões acabam ficando em segundo plano na narrativa, já que aqueles encontros servirão para que o protagonista conte aos seus pais sobre sua sexualidade e tenha que lidar com suas reações. A ideia de sair do armário, leva o personagem a confrontar a forma como ele mesmo lida com sua vida, inserindo momentos que até aquele momento ele não precisou lidar perante a ausência dos pais em sua vida adulta. A trama é baseada no livro Strangers de Taichi Yamada e Haigh enriquece a trama ainda mais ao inserir o tema da sexualidade em sua adaptação. Andrew Scott está (mais uma vez) ótimo em cena como um personagem que não demonstra certeza do que está acontecendo em cena, seja nos encontros com os pais ou em sua aproximação com o novo parceiro. Pelo papel, Scott foi indicado ao Globo de Ouro e Gotham Awards e tinha até chances de indicação ao Oscar.  Paul Mescal foi lembrado como coadjuvante no BAFTA, assim como Claire Foy. Todas as indicações foram merecidas, já que o elenco está ótimo em cena e transforma o filme numa jornada emocional bastante sensível. Tudo vai muito bem até o final, que deixa um tom amargo e algumas dúvidas na mente do espectador. Ainda assim, a forma poética como diretor entrega a última cena nos faz até relevar (um pouco) que ele perdeu a chance de fazer um drama romântico perfeito. Faltou ousadia para fazer um final feliz. O filme está disponível no STAR+.

Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers / Reino Unido - EUA / 2023) de Andrew Haigh com Andrew Scott, Paul Mescal, Claire Foy e Jamie Bell.

terça-feira, 30 de abril de 2024

HIGH FI✌E: Abril

 Cinco produções assistidas no mês que merecem destaque:







 
 

4EVER: Paul Auster

03 de fevereiro de 1947 30 de abril de 2024

Paul Benjamin Auster nasceu em Nova Jersey e lançou seu primeiro livro com o nome de Paul Benjamin em 1982. Paul encontrou dificuldades para publicar sua segunda obra: Cidade de Vidro, que foi rejeitada 17 vezes até sua publicação de forma independente em 1985 já assinando como Paul Auster. A obra se tornou a primeira da famosa trilogia de Nova York e o tornou cult. Prolífico, conseguia lançar quase um livro por ano. Seus temas favoritos eram a perda, o luto e a identidade, enquanto suas referências vinham de Dostoiévsky, Hemingway, Fitzgerald, Faulkner, Kafka, Beckett e Proust. Considerado por muitos um dos maiores escritores dos Estados Unidos, Auster se aventurou pelo cinema após a adaptação de seu romance Jogando com a Sorte (1993), que foi seguido pelo roteiro de Cortina de Fumaça (1995). Auster  ficou tão animado com o resultado que co-dirigiu a sequência, Sem Fôlego (1995) de narrativa bem mais fragmentada. Depois dirigiu mais dois filmes com base em seus livros, O Mistério de Lulu (1998) e Kimera (2007). Se alguns críticos identificavam em seus livros a influência do cinema, em seus filmes muitos críticos identificavam um cineasta tímido. O último livro do escritor foi Baumgartner (2023) sobre um professor de Filosofia prestes a se aposentar. Enquanto finalizada o romance, Auster foi diagnosticado com câncer de pulmão que passou a tratar desde então.

NªTV: Bebê Rena

Jessica, Gadd e Nava Mau: sentimentos complicados.
 
Estava eu tentando terminar a primeira temporada de Yellowjackets na Netflix quando todo mundo começou a falar de Bebê Rena. Todo mundo mesmo. Eu não fazia a menor ideia do que se tratava a série e ninguém estava disposto a me contar. Foi com base naquela imagem de uma personagem com um homem preso em um recipiente de vidro que comecei a assistir e confesso que ao final do sexto episódio eu não sabia o que dizer. Entendi perfeitamente toda a comoção provocada pela minissérie, já que a relação entre os dois personagens é tão complexa, tão cheia de camadas e aparentes contradições que os sentimentos do público se embaralham com dos próprios personagens, sendo que estes sentimentos são bastante complicados de serem expressos. Quando descobri que o programa é baseado em fatos reais, aquela impressão de que é uma trama sincera se tornou ainda maior e ao descobrir que o ator principal é o criador da série que resolveu retratar fatos vividos por ele... minha mente deu um nó. A história nos apresenta Donny Dunn (Richard Gadd), um barman aspirante a comediante que ainda não encontrou o sucesso (e está cada vez mais convicto que provavelmente não encontrará), um dia no bar ele se depara com Martha (Jessica Gunning), que está tão triste e sem dinheiro que ele resolve não lhe cobrar o chá pedido por ela. A atenção dada por Donny à moça é o suficiente para que ela se apaixone por ele. A partir daí, ela estará sempre por perto, estreitando cada vez mais a promessa de um laço afetivo. Donny, como também está passando por uma fase difícil, talvez não se dê conta de como toda atenção que Martha lhe oferece, alimenta sua autoestima de uma forma que ele sequer imaginaria. O problema é que Martha começa a passar dos limites e a coisa ganha proporções inimagináveis. As proporções só crescem e quando conhecemos um pouco mais da vida de Donny  junto a um trauma sofrido por ele, tudo se encaixa de forma assustadora. A série, que de início parece uma comédia romântica obscura, começa a ganhar traços cada vez mais intensos conforme destrincha seus personagens e explora como aquelas duas sentiam a necessidade de se agarrar uma outra para encontrar sentido em suas vidas. É uma sucessão de situações tão inesperadas que ao final você não sabe se fica mais compadecido com Martha ou com Donny. Bebê Rena envereda por uma seara de sentimentos complicados que renderiam horas de terapia, especialmente sobre como a sensação de ser amado e especial pode fazer as pessoas se sujeitar a situações degradantes com base na confusão de sentimentos que as atravessa. O que poderia ser uma história de amor se torna em uma grande indagação sobre emoções  que sequer imaginamos que possuímos. Ao final dos episódios me deparando com o sucesso do programa da Netflix e as alardeadas trocas de ofensas entre o protagonista e a antagonista na vida real, só fico pensando como o ciclo vicioso da relação de ambos ainda não terminou, assim como a busca incessante por atenção e reconhecimento. O sucesso de Bebê Rena se sustenta pela forma como nos faz pensar sobre a complexidade do ser humano.
 
Bebê Rena (Baby Reinder / Reino Unido - 2024) de Richard Gadd com Richard Gadd, Jessica Gunning, Nava Mau, Nina Sosanya, Shalom Brunne-Franklyn, Tom Goodman-Hill e Mark Lewis Jones. 

.Doc: Ascensão e Queda - John Galliano

Galliano: o ícone cancelado.
 
Juan Carlos Antonio Galliano nasceu em Gibraltar, um território britânico ao sul da Espanha em 1960. Sua família se mudou para Londres quando ele tinha apenas seis anos de idade. Graduado em design de moda pela conceituada St. Martins College of Art & Design em 1984, ele se tornou mais conhecido como John Galliano, o aluno criativo de ideias fora da caixinha quando a ideia era criar roupas exuberantes. Além de criar para sua própria marca, Galliano também ganhou reconhecimento por seu trabalho na Givenchy e, especialmente, na Dior. Considerado hoje o maior estilista vivo no mundo, a ascensão de John foi tão vertiginosa quanto sua queda. Em tempos em que as supermodelos chegavam  a ofuscar as coleções em que desfilavam, o estilista fazia questão de aparecer em seus desfiles e causar alvoroço com sua participação. Adorado pelas modelos, por celebridades e pela mídia, tudo caiu por terra após incidentes infelizes em restaurantes onde o estilista destilava comentários antissemitas. O ocorrido em 2011 provocou grande repercussão e seu afastamento da Dior, no que poderia ser considerado o seu "cancelamento" no mundo fashion. A pergunta que sempre ficou na cabeça é o que teria acontecido para que aquele cultuado ícone da moda fizesse aquilo? O documentário dirigido por Kevin MacDonald  tenta desvendar as camadas da situação com a preocupação de não pregar a absolvição do estilista, mas nos fazer entender um pouco mais sobre a situação. Solta aos olhos a criatividade de Galliano e a forma como sua rotina se tornou cada vez mais frenética com a quantidade de trabalho que acumulava, ao ponto de entregar mais de trinta coleções por ano. Para dar conta do ritmo, os remédios e o álcool se tornaram constantes em sua rotina. No entanto, John também tinha suas feridas internas para cuidar, especialmente diante da família conservadora que precisava lidar com a homossexualidade do filho, o que pode ter influenciado muito em sua busca por aceitação e prestígio (maximizado pelo culto à celebridade em torno dele). Pode ser dito que Galliano era visto como um deus da moda, uma figura digna de culto e conforme aconteciam os avanços de sua carreira. Sempre buscando inspiração em diferentes espaços e realidades, vez por outra, sua carreira criava polêmicas, como aquela coleção em que usava como referência pessoas em situação de rua. Em algumas entrevistas que aparecem no documentário é citado que por vezes Galliano não percebia o que poderia ofender algumas pessoas, da mesma forma que a ideia de "fuga" era constante em seus desfiles. A impressão é que seus vícios aumentavam junto à sua fama, provocando uma fermentação perigosa em suas emoções que explodiram naqueles comentários impublicáveis. Ainda que até hoje o estilista procure atitudes para se redimir, nada justifica aquela atitude. Neste ponto, o que o filme propõe é algo bastante atual: é possível separar a obra do seu autor? Quando vemos sob perspectiva a carreira de Galliano e os bastidores de tudo aquilo, o mito fica ofuscado pelo ser humano por trás de todo o espetáculo e o culto exagerado às celebridades se vê refletida nas fissuras da personalidade de um ícone. O documentário está disponível na MUBI.

Ascensão e Queda - John Galliano (High and Low - John Galliano / Reino Unido - EUA - França / 2023) de Kevin MacDonald com John Galliano, Naomi Campbell, Penélope Cruz, Kate Moss, Anna Wintour, Robin Givhan, Hamish Bowles e Amanda Harlech.

domingo, 28 de abril de 2024

PL►Y: Dias Perfeitos

Koji Yakusho: merecido prêmio de atuação em Cannes2023.

Faz um tempo que assisti Dias Perfeitos na Mubi, mas não me sentia preparado para escrever sobre ele. Até agora acho que ainda não estou pronto. A começar porque é um daqueles filmes que tem uma vibe que acho difícil de me conquistar: o filme de ficção que pretende ser um recorte da vida real de um personagem. Não sei se deu para entender, mas é aquele tipo de filme que não quer soar como um filme, mas como um pedaço da vida de alguém. Sei que é o tipo de filme mais difícil de se fazer, já que invariavelmente soa artificial, pedante e por vezes deixa a sensação que nada acontece. Com Dias Perfeitos não acontece nenhum desses problemas. O filme soa tão honesto e real que achei muito fácil ser levado pelo cotidiano do protagonista que é um dos responsáveis por limpar os banheiros públicos (de estética única) nas ruas de Tóquio. Ele é Hyraiama, vivido por Koji Yakusho (eleito melhor ator no Festival de Cannes de 2023), um senhor de poucas palavras que parece gostar bastante do seu dia a dia sem grandes acontecimentos. Ele tem algumas interações com outros personagens ao longo do filme, mas não parece ter vínculos fortes com nenhum deles, embora o roteiro coloque aqui e ali a promessa de laços afetivos que nunca avançam (talvez o mais interessante seja a pessoa misteriosa através de um registro em um papel deixado escondido em um dos banheiros em que trabalha). Sabemos que ele também gosta muito de ler e ouvir álbuns clássicos de Lou Reed, Van Morrison e Patti Smith, o que consegue tornar o filme muito agradável de se ouvir. Dirigido pelo alemão Win Wenders, Dias Perfeitos nasceu de uma ideia que girava em torno de um documentário sobre os estilosos banheiros públicos de Tóquio, mas logo ganhou corpo de um filme de ficção sobre um senhor que parece não ligar muito para a solidão. Em tempos acelerados e de redes sociais, Hyraiama não faz ideia do que é Spotify e quase surta quando seu colega de trabalho (Tokio Emoto) propõe que venda uma de suas fitas cassete (e Hyraiama tem uma vasta e apetitosa coleção). Ele parece sempre na contramão. É um filme que avança sem grandes acontecimentos, mas que ao final nos faz indagar sobre a história daquele homem e o que pode ter lhe acontecido para ter escolhido viver afastado da família e sem "grandes ambições" (e é importante ressaltar as aspas, porque, afinal de contas, quais são as ambições do protagonista? Por que as que são ambientadas seriam menores que as de outras pessoas?). Até agora não saberia dizer muito bem o motivo, mas o fato foi que o filme me deixou bastante  comovido, muito por conta da interpretação de Yakusho. Talvez em alguns momentos eu tenha lembrado de mim mesmo, de minha relação com o trabalho (que piorou muito no último ano), o gosto por ouvir música o dia inteiro e o fato de também morar sozinho distante da família (nem tão distante, são três horas de viagem). Quando o filme terminou eu só queria conhecer mais sobre aquele personagem que termina o filme quase do mesmo jeito que começou. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Dias Perfeitos tinha poucas chances de levar o prêmio para casa, mas sabe como tornar marcante a sua forma sutil de contar a história de pedaço da vida de um personagem que parece ser alguém de verdade.

Dias Perfeitos (Perfect Days / Japão - Alemanha / 2023) de Win Wenders com Koji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Min Tanaka e Reina.